Por Ramon Fernandes Lourenço*
O rápido pronunciamento do presidente Jair Messias Bolsonaro do último dia 24 de março incendiou novamente os espaços de discussão pública, principalmente os digitais, com a utilização ampla de simplificações, comparações e frases de efeito. Em sua fala, o presidente minimizou novamente a importância e a gravidade da COVID-19, indo contra, inclusive, as orientações iniciais de seu imediato na pasta da saúde, o Ministro Henrique Mandetta, no que diz respeito à importância das medidas de restrição social. Neste novo pronunciamento o Presidente da República inflama as parcelas mais reacionárias da sociedade com palavras calculadas, repetindo algumas vezes os termos “pânico”, “histeria” e “pavor”, clamando a sociedade ao retorno à normalidade em um período agudo da pandemia.
As estratégias de valorização do embate são largamente utilizadas ao ressaltar o conflito entre a imprensa brasileira versus seu governo, também da postura das “poucas autoridades estaduais e municipais” com as estratégias de fechamento e “terra arrasada” ou até mesmo ao destacar os esforços de seu governo para lidar com a pandemia, “quase contra tudo e contra todos”. Estas ações reforçam a imagem já construída em épocas de campanha (Azevedo Junior e Bianco, 2019), daquele que vem lutar contra a corrupção e contra aqueles que querem transformar o país em uma nova Venezuela (Chagas et al, 2019).
O presidente ainda faz uso de comparações tais como a relação entre vidas e empregos, a relação entre idosos do grupo de risco com o fechamento de escolas infantis, algo largamente explicado nos primeiros dias da pandemia no país. Além disso, trás dados questionáveis e que não guardam relação direta com os argumentos apresentados, como a afirmação de que 90% das pessoas que contraem a doença não apresentam nenhuma manifestação e a mensagem de que deverão ser retomadas as atividades normais, colocando a responsabilidade do controle da doença nas mãos de cada indivíduo, que deve tomar as precauções necessárias para não transmitir o vírus para os outros. Ora, se não há testes suficientes nem para os sintomáticos e com a declaração do Ministério da Saúde de que há transmissão comunitária nacional, como é que se controla o avanço de uma doença com uma horda de pessoas socializando normalmente sem saber que portam o vírus?
Foto: Neila Rocha/MCTIC
Enquanto o pronunciamento do presidente acontecia, a replicação do SARS-CoV-2 avançava progressivamente no Brasil e no mundo.
- 62 mil novas contaminações ao redor do mundo entre os dias 24 e 25 de março — salto de 467 mil para 529 casos confirmados.
- O número de casos no Brasil vem dobrando a cada 5 dias, dado preocupante em comparação com outros países: Itália — 8 dias, EUA — 4 dias, média mundial — 7 dias.
- Até o dia 20 de março o Brasil havia feito somente 2917 testes para identificar o COVID-19, em relação a 4103 na Colômbia e 15637 no Vietnã.
- Evolução dos casos no mundo:
E não foi só o vírus que se movimentou durante este período, o pronunciamento teve diversos desdobramentos importantes.
Implicações Internacionais:
No mesmo dia do pronunciamento de Jair Bolsonaro, 24 de março, a Embaixada dos EUA pede que seus cidadãos retornem ao seu país por conta da pandemia. Seguindo o exemplo, o Embaixador do Reino Unido recomenda fortemente aos cidadãos daquele país que estejam em visita ao Brasil que retornem imediatamente, em mensagem publicada no dia 26 de março. Já a Embaixada Alemã em Brasília publicou uma postagem no dia 30 de março, recomendando o retorno de seus cidadãos.
Tweet da Embaixada Americana: https://twitter.com/EmbaixadaEUA/status/1242620985196589057
Tweet da Embaixada do Reino Unido: https://twitter.com/VijayR_HMG/status/1243149400504971266
Post no Facebook da Embaixada da Alemanha em Brasília:
https://www.facebook.com/EmbaixadaAlemanha/posts/2795027917263184
#Milanononsiferma / #OBrasilNãoPodeParar / #CoronaLockdown
Enquanto o pronunciamento ecoa no país com diversos posicionamentos favoráveis e contrários, os grupos de apoio ao presidente convocam carreatas nas principais cidades com pessoas que pedem a reabertura dos comércios, aumentando a tensão entre Governo Federal e Governos Estaduais e Municipais. A retomada das atividades é o mote da nova campanha publicitária que seria levada a cabo nos próximos dias, tendo seu vídeo compartilhado nas mídias digitais com a chamada “O Brasil não pode parar”. Campanha que teria um custo de 4,8 milhões e seria contrata sem licitação, em regime emergencial.
Em desdobramento mais recente a Justiça Federal do Rio de Janeiro acatou o pedido do Ministério Público Federal pedindo a proibição da veiculação de qualquer peça publicitária da campanha, obrigando a Secretaria de Comunicação (SECOM) a apagar postagens já divulgadas com o mote. Em nota enviada à imprensa, a Secom afirmou que não existia campanha alguma, sendo na realidade uma notícia falsa compartilhada por determinados veículos de imprensa. Aqui é possível visualizar o usa da estratégia de desqualificação do discurso por meio da qualificação de notícias como “fake news” (Lazer et al, 2018; Wardle e Derakhshan, 2017), uma prática comum dos membros do governo. Mas, mesmo com a proibição de circulação das peças oficiais, a mensagem da campanha já havia ganhado o público, inclusive com a reverberação do próprio Presidente da República.
Tweet do Presidente: https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1242024542345875457
Aqui, mais uma vez é inevitável a comparação com a Itália, ao colocar os dois movimentos em perspectiva: #Milanononsiferma e #ObrasilNãoPodeParar.
Vídeo O Brasil não pode parar:
https://www.youtube.com/watch?v=iU5JBKE1sBM&feature=emb_title
Vídeo #Milanononsiferma:
https://twitter.com/andreasmuller/status/1243360447400513537
Na Itália a proposta de retomada de atividades ocorreu quando o país somava ainda 17 mortes pela COVID-19, em 28 de fevereiro. Três dias depois das primeiras movimentações para o retorno à normalidade o número de mortos dobrou, dando início ao ciclo exponencial de crescimento dos óbitos daquele país. Após o país registrar o maior número de óbitos pela doença em todo o mundo, o prefeito de Milão, responsável pela campanha publicitária, reconhece o erro e pede desculpas.
Enquanto o Brasil segue firme o caminho daquele país, ao redor do globo crescem as manifestações favoráveis às medidas de restrições sociais, o que pode ser visto na hashtag #CoronaLockdown no Twitter, que esteve entre os trending topics de 27 de março de 2020.
Após esta aparição do dia 24, o presidente realiza mais um pronunciamento, agora no dia 31 de março, com um tom muito mais ameno e alinhado com as principais orientações no cuidado com a pandemia. Apesar de concordar com as orientações, Bolsonaro faz amplo uso de citações do diretor geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adanon, que, retirados do contexto reforçam a preocupação do presidente com a preservação dos empregos e dos aspectos econômicos desta crise. Por fim, este trecho deixa evidente o posicionamento central deste novo pronunciamento: “Não me valho dessas palavras (de Tedros Adanon) para negar a importância das medidas de prevenção e controle da pandemia, mas para mostrar que da mesma forma precisamos pensar nas mais vulneráveis. Essa tem sido minha preocupação desde o princípio.”
Porém, mesmo abrandando o tom em seu mais novo pronunciamento, a fala do dia 24/03, mais direta e com tom de afronta às principais autoridades em saúde nacionais e internacionais já havia ganhado as ruas, assim como a campanha publicitária “O Brasil não pode parar”, que de acordo com a Secretaria de Comunicação da Presidência, nunca existiu.
Secom afirma que nunca planejou, criou, veiculou ou contratou serviços para a realização de uma campanha institucional: https://twitter.com/secomvc/status/1245441333017350144?s=19
Enquanto a Justiça Federal do Rio de Janeiro intimou o Twitter a apresentar o histórico de posts deletados pela Secom, com o conteúdo da campanha “O Brasil não pode parar”: https://www.poder360.com.br/coronavirus/justica-manda-twitter-mostrar-historico-de-posts-deletados-pela-secom/
O poder e a responsabilidade na comunicação:
Por fim, é importante observar como o poder das manifestações de uma autoridade pública tem impactos diretos nas ações da sociedade, produzindo desdobramentos dentro e fora do país. Neste sentido, é preciso acompanhar como uma narrativa descolada da realidade, que não leva em conta dados científicos e decisões embasadas em conhecimento técnico, podem levar a cabo consequências desastrosas no tratamento desta crise no país. Ao ignorar sistematicamente os dados e informações que demonstram as melhores práticas implementadas nos países que estão em estágios mais avançados da gestão da pandemia, o Brasil segue com pronunciamentos embasados em vontades particulares, teorias conspiratórias e a simplificações binárias.
Neste momento é importante observar com atenção os estudos que estão sendo publicados nos países mais afetados pela COVID-19, em especial aqueles que demonstram como as medidas de controle de circulação tem contribuído para a mitigação da transmissão viral (Kraemer et al, 2020). Uma crise desta natureza não tem solução simples, não é razoável apostar todas as fichas em somente um medicamento que está em fase inicial de estudos, como a cloroquina.
Agora é o momento de trocar a informalidade das mídias sociais por um trabalho firme e consistente de comunicação (e, principalmente, de gestão de crise) pautado em estudos sérios e embasados no conhecimento científico produzido.
* Ramon Fernandes Lourenço – Relações Públicas, mestre em Ciência da Informação pela UEL. Relações Públicas na Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA).
Referências:
AZEVEDO JUNIOR, Aryovaldo de Castro; BIANCO, Erica Cristina Verderio. O processo de mitificação de Bolsonaro: Messias, presidente do Brasil. Revista ECO-Pós, v. 22, n. 2, p. 88–111, 2019.
CHAGAS, Viktor; MODESTO, Michelle; MAGALHÃES, Dandara. O Brasil vai virar Venezuela: medo, memes e enquadramentos emocionais no WhatsApp pró-Bolsonaro. Esferas, n. 14, p. 1–17, 2019.
KRAEMER, Moritz UG et al. The effect of human mobility and control measures on the COVID-19 epidemic in China. medRxiv, 2020.
LAZER, David MJ et al. The science of fake news. Science, v. 359, n. 6380, p. 1094–1096, 2018.
WARDLE, Claire; DERAKHSHAN, Hossein. Information disorder: Toward an interdisciplinary framework for research and policy making. Council of Europe report, v. 27, 2017.