Grupo de pesquisa ligado à linha de Comunicação e Política do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná.

A engenharia do consenso e o think tank Atlas Network

Por Ary Azevedo Jr.; Osmar Buzinhani e Victor Lachowski

Onda conservadora

A onda conservadora não é um fenômeno local, embora o Brasil possa ser identificado como um caso extremo de ascensão e consolidação de uma doutrina que prega valores caros à direita neoliberal, como redução do Estado e implementação de programas de privatizações, fomento ao livre mercado com redução da carga tributária para o setor empresarial e estímulo a políticas de desregulamentação, redução de direitos sociais e trabalhistas sob o pretexto de geração de empregos (Scheeffer, 2014).

O Índice de Democracia da revista The Economist apontou, em 2019,  o declínio da saúde democrática em setenta países, usando critérios como respeito ao devido processo legal, liberdade religiosa e o espaço dado à sociedade civil. Hoje em dia, cerca de metade das nações da Terra podem ser consideradas democracias – imperfeitas ou não – enquanto os outros 50% tendem ao autoritarismo.

Naomi Klein (2017) destaca que em todo o mundo, forças de extrema-direita estão ganhando terreno ao explorar o poder do nacionalismo nostálgico e a raiva dirigida a burocracias econômicas remotas — seja a OMC, a União Européia ou a ONU  — e combiná-los a racismo e xenofobia, oferecendo uma ilusão de controle por meio do esmagamento de minorias, étnicas ou sociais/comportamentais e da valorização do ilusório discurso meritocrático que relega aos miseráveis a culpa pelo seu fracasso, como se independesse de condicionantes socioeconômicas e estivesse restrita à própria força de vontade para conseguir ascensão social.

Neste sentido, Donald Trump seria produto e representação deste zeitgeist contemporâneo, que classifica a vida humana com base em raça, religião, gênero, orientação sexual, aparência e capacidades físicas, e que as usa sistematicamente como justificativas para fazer avançar políticas econômicas focadas na lucratividade corporativa sob pretexto de estimular o desenvolvimento econômico, com o conseqüente aumento de qualidade de vida dos cidadãos. Entretanto, no curto prazo, tais políticas acarretam redução de direitos trabalhistas (LAPORTA, 2018) e do bem estar social  (BBC BRASIL, 2020) e o aumento da discrepância entre ricos e pobres em conseqüência da concentração de renda acarretada pelas mesmas (DEUTSCHE WELLE, 2017).

Para Chomsky (2017, po.1597), a riqueza se tornou extremamente concentrada (de forma acentuada na faixa do 0,1% da população mais abastada), gerando uma concentração de poder político e, conseqüentemente, uma legislação para aprofundar o ciclo e levá-lo ainda mais longe: revisão de tributação e outras políticas fiscais, desregulamentação, mudanças nas regras da administração corporativa – o que permitiu imensos ganhos para os executivos – e assim por diante.

A atuação presidencial repercute esta realidade, com a forte ação de  interesses e lobbies corporativos para influenciar na definição de políticas públicas. Nos Estados Unidos, pesquisadores forneceram evidências de que “elites econômicas e grupos organizados representantes de interesses comerciais causam substanciais impactos independentes sobre as políticas governamentais dos EUA, ao passo que cidadãos comuns e grupos de interesse de massas exercem pouca ou nenhuma influência independente (CHOMSKY, 2017, po.77).

Parcialmente decorrente do financiamento de campanhas eleitorais, a pressão corporativa  na formulação de políticas públicas  gerou incremento da concentração econômica com políticas fiscais, normas de governança corporativa, desregulamentação etc. consonantes aos interesses empresariais, convergindo para criar um círculo vicioso de extrema concentração da riqueza, primordialmente na fração do 1% mais abastado da população: altos executivos e presidentes de empresas, gestores de fundos de investimento de alto risco e afins (CHOMSKY, 2017, po.1113).

Esta mercadocracia tem levado ao esvaziamento do protagonismo dos anteriormente poderosos Estados-Nação, fazendo com tornem-se coadjuvantes e chancelem pautas neoliberais em que pessoas jurídicas sejam privilegiadas em detrimento das pessoas físicas, o que reforça a animosidade entre eleitores e lideranças político-partidárias responsáveis pela definição de diretrizes para políticas públicas dos Estados Nação, colocando o sistema democrático representativo em xeque e alavancando o avanço populista de lideranças conservadoras como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán, Mateusz Morawiecki, Rodrigo Duterte etc. (KOKAY, 2018).

Torna-se ainda mais preocupante quando corporações agem de modo orquestrado, instaurando sua influência ideológica por meio do financiamento  a cientistas, pesquisadores, jornalistas e formadores de opinião, desde que reforcem suas ideias e valores, gerando visibilidade e atuando para a construção de consensos sociais.

E é assim que atua a Atlas Network, organização de estrutura global fundada em 1981 por Antony Fisher, com o objetivo de difundir pensamentos baseados na obra do economista e filósofo Friedrich Hayek que, de modo simplificado,  advoga para que serviços públicos sofram privatizações e empresas ganhem liberdade para agirem como julgarem melhor quanto aos seus serviços e gerenciamento de pessoas.

A Atlas Network atende às necessidades de empresas e políticos quanto à construção de opinião pública para facilitar o desenvolvimento de  legislações em favor de políticas neoliberais baseadas nas premissas de Hayek. Para tanto, a Atlas, importante think tank[1] norte americano,  financia instituições ou organizações dedicadas a produzir e difundir conhecimento sobre temas políticos, econômicos ou científicos, com o objetivo de pautar debates por meio da publicação de estudos, artigos, vídeos, podcasts, eventos, entrevistas e outras formas variadas de influenciar a opinião pública  através de porta vozes com visibilidade midiática. Corporações como Philip Morris, ExxonMobil , Mastercard e mega investidores como os irmãos Kock e John Templeton tiveram (ou tem) com vínculos com a organização.

Conservadorismo à brasileira

No Brasil, estudo da University of Pennsylvania (McGANN, 2020) aponta a presença de 103 organizações existentes com o objetivo de servir de referência para influenciar na construção de políticas públicas em áreas como economia, meio ambiente, saúde, segurança, tecnologia, governança, relações internacionais, social, militar. Cotejando-se estes dados  às informações do website da Atlas Network, no país são listadas  como parceiras da organização, com ideologia eminentemente neoliberal: Instituto Atlantos, Instituto de Estudos Empresariais, Instituto de Formação de Líderes (IFL-SP, IFL-MG e IFL-SC), Instituto Liberal (IL-RJ e ILISP-SP), Instituto Liberdade (IL-RS), Instituto Líderes do Amanhã,  Instituto Ludwig von Mises Brasil, Instituto Millenium, Livres,  Centro Mackenzie para Liberdade Econômica e Alunos Pela Liberdade (ATLAS NETWORK, 2020).

O Instituto Millenium, por exemplo, organiza eventos e palestras econômicas em benefício do livre mercado, recebendo  apoio de grandes corporações, como: Bank of America, AmCham-Brasil, Merril Lynch, Grupo RBS e Gerdau (FANG, 2017). Entre seus fundadores está Paulo Guedes, atual Ministro da Economia do governo Jair Bolsonaro (sem partido).  Outra figura ilustre em seus quadros é o presidente do Banco Central no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Armínio Fraga. Isto demonstra factualmente a integração entre a pauta econômica e administrares públicos de viés neoliberal apoiados pela Atlas Network, os quais implementam políticas de interesse corporativo como  a  continuação de reformas iniciadas sob a gestão de Michel Temer (MDB), como a mini reforma trabalhista realizada em 2019 com a Lei n. 13.874, 20 set.2019 (BRASIL, 2019), que  flexibilizou ainda mais os direitos trabalhistas com o intuito de gerar crescimento econômico e reduzir o desemprego ou a reforma da Previdência através da Emenda Constitucional n. 103, 13 nov.2019 (BRASIL, 2019), que  alterou o sistema previdenciário, com destaque para  adoção de idade mínima (65 anos para homens e 62 para mulheres), mudança no cálculo para o valor do benefício, instituição  de normas de transição para os trabalhadores da ativa, alteração do sistema de pensões, elevação da taxação de funcionários públicos, além de outros aspectos, com estimativa de economia de R$ 855 bilhões aos cofres públicos para os próximos dez anos (GUIMARÃES, 2019).

Novamente a conta do ajuste recaiu sobre os trabalhadores, sendo benéfica para empresas e empresários. E isto é conseguido pela construção do consenso patrocinada por think tanks neoliberais como a Atlas Network, e suas ramificações locais, que influenciam na definição de políticas públicas, que usualmente são referenciadas por  formadores de opinião estabelecidos em diferentes áreas do conhecimento, com pesquisas e estudos subsidiados pela organização e acabam sendo visibilizados pela  imprensa, num círculo virtuoso corporativo> mas, muitas vezes, vicioso para a sociedade que carece de políticas inclusivas e integrativas que transcendam a visão corporativo do lucro acima de tudo.

[1] Instituições ou organizações dedicadas a produzir e difundir conhecimento sobre temas políticos, econômicos ou científicos.

 Referências

ATLAS NETWORK. Partners. Atlas Network, Arlington, EUA. Disponível em <https://www.atlasnetwork.org/partners/global-directory>. Acesso em 10 mai.2020.

BBC BRASIL. Como Trump conseguiu criar um ‘muro invisível’ para reduzir a entrada de estrangeiros nos EUA. News Brasil BBC, 29 fev.2020. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51652664>. Acesso em 10 jun.2020.

BRASIL, Lei n. 13.874, 20 set.2019. Medida Provisória da Liberdade Econômica Brasília, 20 set. 2019. Disponível em <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.874-de-20-de-setembro-de-2019-217365826>. Acesso em 30 mai.2020.

BRASIL, Emenda Constitucional n. 103, 13 nov.2019. Alteração do sistema de previdência social. Brasília, 13 nov. 2019. Disponível em <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/emenda-constitucional-n-103-227649622>. Acesso em 30 mai.2020.

CHOMSKY, Noah. Quem Manda no Mundo? São Paulo: Editora Planeta, 2017.

ECONOMIST, Democracy Index 2019: A year of democratic setbacks and popular protest. The Economist Intelligence Unit. Disponível em <https://www.eiu.com/topic/democracy-index>. Acesso em 10 mai.2020.

 FANG, Lee. A esfera de influência: Como os libertários americanos estão reinventando a política latino-americana. The Intercept Brasil, 11 Ago. 2017.  Disponível em <https://theintercept.com/2017/08/11/esfera-de-influencia-como-os-libertarios-americanos-estao-reinventando-a-politica-latino-americana/>. Acesso em 02 fev.2020.

GUIMARÃES, Lígia. Reforma da Previdência: na versão final aprovada no Senado, quais mudanças podem ajudar a economia?. BBC News Brasil, 22 out.2019. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50148479>. Acesso em 30 mai.2020.

KLEIN, Naomi. Não basta dizer não. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2017.

KOKAY, Érika.Onde o populismo de direita está no poder no mundo.Deutsche Welle, 29 out.2018. Disponível em <https://www.dw.com/pt-br/onde-o-populismo-de-direita-est%C3%A1-no-poder-no-mundo/a-46065697>. Acesso em 10 jun.2020.

LAPORTA, Taís.Entenda a reforma de Trump que levou empresas a subir salários e criar vagas nos EUA.Globo G1, 27 jan.2018. Disponível em <https://www.dw.com/pt-br/onde-o-populismo-de-direita-est%C3%A1-no-poder-no-mundo/a-46065697>. Acesso em 10 jun.2020.

McGANN, James G., 2019 Global Go To Think Tank Index Report. The Lauder Institute, University of Pennsylvania, 2020.  Disponível em <https://repository.upenn.edu/think_tanks/17>. Acesso em 10 mai.2020.

SCHEEFFER, Fernando. (2014). Esquerda e direita: velhos e novos temas. Anais do 38º Encontro Anual da Anpocs. Disponível em <https://anpocs.com/index.php/papers-38-encontro/gt-1/gt27-1/9084-esquerda-e-direita-velhos-e-novos-temas/file>. Acesso em 10 mai.2020