Grupo de pesquisa ligado à linha de Comunicação e Política do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná.

## Ultraje, “tretas” e polarização

Por Fabiane Lima [1]

O Jornalismo, em conteúdo e ação, é influenciador e influenciado pelas discussões na opinião pública. Essa relação de interdependência é importante não só pelo seu papel na legitimação do poder, mas como uma das vias mais interessantes de investigação na Comunicação (PETERSEN, 2019). Na recente crise política, o conteúdo jornalístico tem dedicado tempo e recursos para cobrir conflitos que acontecem em meio eletrônico, o que não é para menos: recentemente, o comportamento da conta do presidente Jair Bolsonaro no Twitter chamou a atenção da própria plataforma, que apagou duas de suas postagens sob a alegação de que veiculavam informações falsas (G1, 2020). Como não noticiar o presidente?

Como demonstram os estudos na área, os papéis jornalísticos são mutantes e situacionais; eles até mesmo se combinam e geram híbridos (MELLADO et al, 2017). A cobertura noticiosa das redes sociais do presidente pode ser um exemplo de híbrido, dado que o discurso nessas plataformas trata a própria política como entretenimento (CHAGRA, 2014). Dentro dos papéis jornalísticos, o infoentretenimento é uma forma de fazer jornalismo que busca aproximação com a audiência focando no sensacionalismo na abordagem dos temas, em personalização e na vida privada dos envolvidos, evocando diferentes emoções e morbidez em busca do engajamento com a audiência. Em termos menos pejorativos, o infoentretenimento se foca em relações e pessoas, mais do que em fatos e acontecimentos.

Dentro das redes de comunicação do presidente e de seus aliados, as “tretas” têm função política, e servem ao propósito de redirecionar a atenção da cobertura e, em consequência, o debate e a opinião pública. Seja qual for a estratégia de Bolsonaro [2], ela tem espelho no comportamento online de outros líderes políticos de perfil semelhante. Na discussão sobre esse fenômeno, ele ganhou alguns nomes — firehosing, bateção de cabeça, cortina de fumaça —, que buscam conceituar o que acontece quando políticos se valem de polêmicas e das redes sociais para impulsioná-las e, assim, estabelecer sobre o que se discute (SIMÃO, 2019).

Uma das formas como se tem feito isso é através do uso de símbolos de forma sugestiva com a imediata negação da referência que esse símbolo evoca. Há dois casos desses que são bastante ilustrativos. O primeiro deles é o episódio do copo de leite na live de Bolsonaro (SACONI, 2020) que teve como uma de suas reações uma acusação de nazismo por parte do ex-candidato à presidência Fernando Haddad. Tendo seus adversários mordido a isca — ou escutado o dog whistle —, Bolsonaro pôde sinalizar uma mensagem ambígua a seus apoiadores e fazer seus adversários parecerem exagerados ou paranoicos. O outro episódio de uso dessa tática não teve tanto sucesso, talvez porque lhe tenha faltado sutileza, e terminou com a demissão do secretário de cultura à época, Roberto Alvim (O GLOBO, 2020).

A trollagem, quando funciona, consegue exatamente o mesmo tipo de reação que as ações do bloco bolsonarista conseguiram de Haddad. A busca pela indignação da audiência adversária serve como forma de esgarçar os limites do debate público. A indignação por si só se torna uma arma política: em uma sociedade paralisada por uma pandemia global sem precedentes, cujas instituições públicas estão dominadas por um bloco político de extrema-direita, a indignação se torna a única arma possível: é também cômoda, realizável com um clique. A materialização dessa indignação em notas de repúdio por parte da oposição à Bolsonaro nas várias esferas políticas se tornou piada, enquanto pedidos de impeachment sem alianças suficientes para se efetivarem se empilham (BERTONI, 2020).

À esquerda, a polarização também se instala internamente, uma vez que a indignação como arma política pode ser aplicada facilmente a qualquer divergência, impedindo o debate aberto em função de uma ortodoxia moralizante no campo da linguagem [3]. O ultraje é usado como forma de sinalizar virtude (JORDAN et al, 2016), de se colocar à parte como moralmente superior, mas não vai muito além disso quando usado politicamente.

Alguns pesquisadores no campo da opinião pública defendem, com base em seus experimentos, que as bolhas não têm tanta influência na polarização da audiência (FLAXMAN et al, 2016; DUBOIS e BLANK, 2018; BAIL et al., 2018). Essas pesquisas, no entanto, apontam para uma tendência à radicalização de crenças quando esses polos do debate se encontram. Porém, seus métodos não parecem dar conta da permeabilidade do trânsito dos usuários nessas bolhas midiáticas, dinâmica específica da interação nas redes sociais digitais. É nessas câmaras de eco que os discursos desses conflitos online são forjados e formados.

A permeabilidade de trânsito nos ambientes digitais é moderada por um grande número de contratos e sobreposições. A opinião pública é ela mesma instrumento de controle e mediação social. Entender como funciona a polarização — como cada polo perde o limite do que pode ser dito “for the lulz” (de brincadeira, no caso da direita), ou se perde nas normatizações da linguagem e do que se pode dizer (no caso da esquerda) — é um grande desafio de pesquisa. Pelo que se encontra na área, parece bem difícil dar conta disso. Limitações metodológicas, técnicas e até mesmo éticas exigem criatividade do pesquisador, mas uma das maiores dificuldades e complexidades desse tema é que não dá pra medir o que as pessoas “evitam dizer” em público e só dizem em suas bolhas. Um método de pesquisa que dê conta dessas sutilezas é a quimera de todo pesquisador social.

 

[1] Fabiane Lima é formada em Design Gráfico pela Universidade Positivo (2008), e mestre em Tecnologia e Sociedade pela UTFPR (2014). Foi professora convidada do curso de Pós-Graduação em Animação Digital da PUC-PR e professora substituta nos cursos do Departamento de Desenho Industrial da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Atuou como infografista e designer de interação na Gazeta do Povo de 2011 a 2015, e foi programadora na equipe de criação do Núcleo de Educação a Distância da Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus entre 2016 e 2018.

[2] Antes de ser preso em uma operação que investigava sonegação fiscal envolvendo empresários ligados ao MBL (Movimento Brasil Livre) (MACEDO, 2020), Carlos Afonso, mais conhecido como Luciano Ayan, divulgou no YouTube algumas estratégias que ele e outros aliados de Olavo de Carvalho e Bolsonaro alegadamente usavam nas “guerras culturais” nos fóruns de discussão online (AYAN, 2020).

[3] Ao tentar discutir de que formas o apagamento do sexo nas leis específicas de proteção às mulheres no Reino Unido pode prejudicá-las, a escritora J.K. Rowling sofreu uma grande contra-reação nas redes sociais. Seus tweets atentavam para a forma como as vidas das mulheres são moldadas em função de seu sexo e suas potencialidades reprodutivas, mas foram considerados “problemáticos” por contradizerem a ideia geral de “gênero” que circula nas redes (ROWLING, 2020).

 

 

Referências bibliográficas

AYAN, Luciano. “Introdução – Regras do Bolsolavismo”. YouTube, 13 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YDoa6HsAYLY&list=PLJX43jGraLAIdczZkrP3JJss7e5VZCNDT> — Acesso em 17 de julho de 2020.

BAIL, Christopher; ARGYLE, Lisa P.; BROWN, Taylor W.; BUMPUS, John P.; CHEN, Haohan; HUNZAKER, M. B. Fallin; LEE, Jaemin; MANN, Marcus; MERHOUT, Friedolin; VOLFOVSKY, Alexander. “Exposure to opposing views on social media can increase political polarization”. In: PNAS — Proceedings of the National Academy of Science of The United States of America. Setembro de 2018. V. 115. N. 37. P. 9216-9221. Disponível em: <https://www.pnas.org/content/115/37/9216> — Acesso em 11 de julho de 2020.

BERTONI, Estêvão. “Bolsonaro: entre notas de repúdio, deposição em debate e tutela”. Nexo Jornal. Expresso, 20 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/20/Bolsonaro-entre-notas-de-rep%C3%BAdio-deposi%C3%A7%C3%A3o-em-debate-e-tutela> — Acesso em 17 de julho de 2020.

CHAGRA, Adrián. “El marketing político bajo la lógica del espectáculo: cómo persuadir en el marco de una política espectacularizada”. In RAFAELLI, Marina; MENDIETTA, Angelica. IV Cumbre Mundial de Comunicación Política. México: 2014.

DUBOIS, Elizabeth; BLANK, Grant. “The echo chamber is overstated: the moderating effect of political interest and diverse media”. In: Information, Communication and Society. Janeiro de 2018. V. N. 5. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/1369118X.2018.1428656> — Acesso em 11 de julho de 2020.

FLAXMAN, Seth; GOEL, Sharad; RAO, Justin. “Filter Bubbles, echo chambers, and online news consumption”. In: Public Opinion Quarterly. Março de 2016. V. 80. N. 1. P. 298-320. Disponível em: <https://academic.oup.com/poq/article-abstract/80/S1/298/2223402?redirectedFrom=fulltext> — Acesso em 11 de julho de 2020.

O GLOBO. “Roberto Alvim é demitido da Secretaria Especial da Cultura”. O Globo, 17 de janeiro de 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/roberto-alvim-demitido-da-secretaria-especial-da-cultura-24196589> — Acesso em 17 de julho de 2020.

G1. “Twitter apaga publicações de Jair Bolsonaro por violarem regras da rede”. G1. Política, 29 de março de 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/29/twitter-apaga-publicacoes-de-jair-bolsonaro-por-violarem-regras-da-rede.ghtml> — Acesso em 17 de julho de 2020.

JORDAN, Jillian; BLOOM, Paul; HOFFMAN, Moshe; RAND, David. “What’s the Point of Moral Outrage?”. The New York Times. Opinion, 26 de fevereiro de 2016. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2016/02/28/opinion/sunday/whats-the-point-of-moral-outrage.html> — Acesso em 17 de junho de 2020.

MACEDO, Fausto. “Justiça prorroga prisão temporária de empresários ligados ao MBL”. O Estado de São Paulo. Blogs, 15 de julho de 2020. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/justica-prorroga-prisao-temporaria-de-empresarios-ligados-ao-mbl/> — Acesso em 17 de julho de 2020.

MELLADO, Claudia; HELLMUELLER, Lea; MÁRQUEZ-RAMIREZ, Mireya; HUMANES, Maria Luisa; SPARKS, Colin; STEPINSKA, Agnieszka; PASTI, Svetlana; SCHIELICKE, Anna-Maria; TANDOC, Edson; WANG, Haiyan. “The Hybridization of Journalistic Cultures: A Comparative Study of Journalistic Role Performance”. In: Journal of Communication. V. 67, N. 6. Novembro de 2017. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/jcom.12339> — Acesso em 21 de junho de 2020.

PETERSEN, Thomas. “Journalists and Public Opinion”. In: VOS, Tim P.; HANUSCH, Folker (org.). The International Encyclopedia of Journalism Studies. Nova Jersey: John Wiley & Sons Inc, 2019.

ROWLING, J. K. “J.K. Rowling Writes about Her Reasons for Speaking out on Sex and Gender Issues”. JKRowling.com, 10 de junho de 2020. Disponível em: <https://www.jkrowling.com/opinions/j-k-rowling-writes-about-her-reasons-for-speaking-out-on-sex-and-gender-issues> — Acesso em 17 de junho de 2020..

SACONI, João Paulo. “Entenda: por que o copo de leite na live de Bolsonaro provocou controvérsia”. O Globo. Sonar, a escuta das redes (blog). 1º de junho de 2020. Disponível em: <https://blogs.oglobo.globo.com/sonar-a-escuta-das-redes/post/entenda-por-que-o-copo-de-leite-na-live-de-bolsonaro-provocou-controversia.html> — Acesso em 17 de julho de 2020.

SIMÃO, Renan Borges. “Firehosing: por que fatos não vão chegar aos bolsonaristas”. In: Diplomatique Brasil, edição 137. 14 de janeiro de 2019. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/firehosing-por-que-fatos-nao-vao-chegar-aos-bolsonaristas/> — Acesso em 17 de julho de 2020.