Grupo de pesquisa ligado à linha de Comunicação e Política do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná.

A farsa como real; o real como farsa

 

Por Mário Messagi Júnior [1]

 

O bolsonarismo não é uma ideia; é a falta dela. É uma anti-ideia, a antimilitância, a desconstrução de tudo que veio depois da Constituição de 1988. Bolsonaro é o líder perfeito da anti-ideia, um vazio completo de projeto. Assumiu para depois ver o que iria fazer, e seu governo é um sucessivo emaranhado de acasos, misturados com grosserias impronunciáveis e antiministros, que assumem pastas para desmontá-las, como Salles, Damares, Araújo, Guedes.

Há sim interesses poderosos orbitando o governo, como os do “deus” mercado, dos desmatadores, das milícias, do centrão, de pastores canalhas de igrejas neopentecostais, de militares sequiosos por cargos bem remunerados, mas em geral nenhum constitui um projeto político em si mesmo nem todos eles juntos o são. Até porque seus objetivos não podem ser ditos no espaço público, já que são indefensáveis, e visam em geral destruir algo (o estado laico, a proibição de forças armadas paraestatais, as políticas ambientais, o papel econômico do Estado, etc). Então, na luz, o governo trata de sobreviver e perdurar, enquanto a matilha se banqueteia, nas sombras.

Assim, o vácuo de qualquer coisa que se possa chamar de projeto político governa, desfaz a história do país e converte a farsa em real e o real em farsa.

A farsa corresponde aos excessos, mentiras, escândalos inventados no passado. Vamos a elas.

Quatro filhos de Lula sofreram algum tipo de investigação ou denúncia do MP. Apenas um ainda responde processo. As denúncias mais contundentes eram fabulações sobre venda de Medidas Provisórias e compra de caças. Nenhum filho de Lula exerceu cargo público, seja de confiança ou eletivo. Com Bolsonaro, os quatro filhos mais velhos se elegeram puxados pelo pai e são parte de uma “holding” de desvio de dinheiro público. A filha de Dilma foi vítima de uma fake news que lhe atribuía a propriedade das Lojas Havan. O dono de verdade é Luciano Hang, um espalhafatoso bolsonarista.

Mais uma farsa. Em abril de 2013, Veja saiu com uma capa com a manchete “Dilma pisou no tomate”. No acumulado do trimestre anterior, o produto tinha subido 70,9%, no IPC-Fipe. Foi suficiente para a revista alardear a volta da “hiperinflação”. A apresentadora Ana Maria Braga passou boa parte do seu programa com um colar de tomates, rádios e TVs criaram a “crise do tomate”. O vegetal é perecível e sazonal. Seu preço varia facilmente por fatores diversos. Meses depois, o preço do tomate recuou, e a inflação naquele ano fechou em 5,91%, dentro da meta pelo décimo ano seguido.

Setembro de 2020. A inflação projetada para o ano ainda está abaixo de 2%, mas os produtos da cesta básica (os mais importantes para os pobres) sobem muito acima da inflação. O arroz é vendido a até R$40 o saco de 5 quilos. Dos fatores que causam isso (safra, exportação, dólar e estoques reguladores), três têm relação direta com o governo. Em março, o “superministro” da Economia, Paulo Guedes, disse que se fizesse “muita besteira”, o dólar poderia ir a R$5. Em maio, o dólar quase chegou a R$6. Hoje, em queda, está em R$5,41. O arroz, como qualquer commodity, tem seu preço regulado pelo mercado internacional. Ou seja, o preço do arroz brasileiro é em dólar. Com o dólar alto, melhor exportar que vender no mercado interno, não se trata de uma variação sazonal. Os alimentos da cesta básica podem baixar, mas vão continuar caros.

Outro alarme falso foi a quebra do Brasil. Há ainda aqueles que acreditam, até hoje, que “o PT quebrou o Brasil”. Por anos sucessivos, até 2013, as contas governamentais apresentaram superavit. A dívida pública subiu, em termos absolutos, mas em relação ao PIB diminuiu durante o governo Lula, até 2009 (quando subiu em função da crise de 2008), então baixou de novo e estabilizou em 60% ou um pouco mais. Em 2014, o Brasil teve deficit novamente, depois de anos: R$23 bilhões. Em 2015, o deficit escalou e bateu em R$120 bilhões. A dívida pública subiu para 73% do PIB, já em meio a uma crise política que começou com a eleição de Eduardo Cunha (PMDB) presidente da Câmara dos Deputados e a erros do governo na condução da política econômica. Em abril de 2016, Dilma foi apeada do poder e o deficit continuou nos anos seguintes: R$161, R$124, R$120 e R$95 bilhões sucessivamente em 2016, 2017, 2018 e 2019. A previsão para 2020 de deficit é de R$822 bilhões, com a dívida pública projetada para atingir 94,3% do PIB no fim do ano, mais de 20% mais alta que índice do final do segundo governo FHC, que já tinha feito um belo estrago. Tem pandemia, é fato, mas tudo foi potencializado pela incompetência governamental, pela crueldade de tratar as medidas de saúde pública, e não o coronavírus, como um problema em si mesmo, pela insistência em ver economia e saúde como mutuamente excludentes. O PT não quebrou o Brasil; Bolsonaro está perto disso.

O PT não é santo. Espalharam por anos que o partido inventou a corrupção, o que é risível de tão falso. Mas não é falso que se enlameou, inclusive com os velhos métodos e os velhos atores. Não é falso que as campanhas políticas da primeira vitória de Lula à segunda de Dilma ficaram muito mais caras, que a corrupção inerente ao modelo de financiamento de campanhas não foi combatida na essência, mas aprofundada. Mas o PT não interferiu na PF, nem na Procuradoria-Geral da República, nem no Ministério Público, nem indicou juízes para supremas cortes pelo perfil ideológico ou por religião. Ao mesmo tempo que afundou na lama, o partido deixou as instituições funcionarem. Em 2013, Dilma mandou ao Congresso e sancionou a lei anticorrupção, que seria depois usada, abusada e distorcida pela Lava Jato de Curitiba para combater o PT e ajudar a eleger Bolsonaro, que, por fim, fechando a ciranda, faria tudo que o PT não fez para desmontar a Lava Jato, interferir na PGR, no Judiciário e no Ministério Público, para encobrir a corrupção, inclusive do centrão. Sim, dos deputados que abandonaram Dilma e fizeram o impeachment, em nome da luta contra a corrupção, com sonhos de acabar com a luta contra a corrupção.

A farsa se tornou totalmente real.

As mazelas começavam a cobrar seu preço: Bolsonaro estava, aos poucos, ruindo. Mostrava resiliência impressionante, exibia a solidez do mundo imaginário que inventou, operando eficiente uma matrix na mente daqueles que foram bombardeados por anos com informações ruins, inclusive e sobretudo dos grandes veículos comerciais do eixo Rio-São Paulo. Mas derretia, aos poucos. Então o real começou a tornar se farsa.

A resiliência de Lula no imaginário popular era sinal claro de que as narrativas, fabulosas ou reais da mídia, importavam pouco para os eleitores, sobretudo os mais pobres. A classe média se guia pelo debate midiático, por valores, por ideologias; os pobres são pragmáticos, sempre foram.

Então um governo sem projeto, sem ideias, apenas com dogmas e ódio, acuado pela impopularidade crescente manda enfim um projeto de renda emergencial de R$200 por mês para o Congresso, em função da pandemia de Covid-19. Sem articulação no parlamento, perde a votação e vê o valor ser aumentado para R$500. Então, para não perder o protagonismo para os deputados, Bolsonaro sobe para R$600. Nem precisava disso. A população não sabe quem aprovou, defendeu ou atacou o projeto de renda emergencial. Só sabe quem paga.

67 milhões de brasileiros são beneficiados, o orçamento previsto para 5 parcelas, é de R$254,4 bilhões. Bolsonaro foi de crítico feroz a promotor do Bolsa Família, que pretende remodelar e roubar simbolicamente do PT, mudando inclusive o nome.

O Bolsa Família paga, no máximo, R$205 e custou, em 2019, R$29,5 bilhões. Vinha acoplado com obrigações de manter os filhos na escola, para romper o ciclo da pobreza, cabia no orçamento da União sem quebrar o Estado, vinha acompanhado de política de valorização do salário mínimo e da criação de empregos, entre outros. Era um programa sustentável, baseado em estudos e com projeto para diminuir a pobreza. Nada parecido com o que Bolsonaro dizia, que era um programa que produzia “vagabundagem”” e “voto de cabresto”.

Com a extensão e valor atual, o auxílio emergencial pode custar mais de meio trilhão por ano, o valor pago não surgiu de nenhum estudo (é um chute), não há políticas acopladas, o salário mínimo deixou de ser reajustado, o desemprego cresce. Enfim, todas as críticas que Bolsonaro fazia soam como um plano agora. Está tudo se realizando, como farsa. O presidente, como já disse várias vezes, não tem apego aos mais pobres, não acredita em programa de rendas, só quer os votos, a popularidade, mesmo que quebre o Estado, agora de fato, não apenas nas fábulas exageradas da narrativa midiática.

Bolsonaro emula o PT, rouba sua base de apoio, tenta roubar outros programas como o Minha Casa Minha Vida, desidrata o petismo, angaria apoio para ganhar força. Não acredita em nada disso, mas gosta e sabe o quanto vale para um autoritário o abraço do povo. O ditador carregado pela multidão é o pior líder imaginável.

Mas não é real. É apenas a falsificação do real pelos afagos do povo. Os que olham com esperança perguntam: por quanto tempo Bolsonaro vai conseguir sustentar a farsa? Os pessimistas perguntam: por quanto tempo Bolsonaro precisa sustentar a farsa? O tempo dirá qual pergunta é mais relevante.

 

 

[1] Mário Messagi Júnior é jornalista e professor de Comunicação na Universidade Federal do Paraná. Mestre em Letras, também pela UFPR, e Doutor em Ciências da Comunicação, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), é autor dos livros Outros junhos virão (2019) e Teorias da Comunicação: aplicações contemporâneas (2018).