Grupo de pesquisa ligado à linha de Comunicação e Política do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná.

Do Batom ao Arco-íris: a interseccionalidade, o feminismo e as políticas públicas

 

 

Por Simone Hubert [1]

 

“Há momentos na vida em que cada um precisa escolher em que lado da história deseja estar. Hoje, afirmamos que estamos do lado dos que combatem o racismo e que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores”.

 

A frase acima foi dita pelo presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, ao encerrar a sessão que aprovou as cotas para negros nas eleições de 2022, em agosto, mas poderia servir para as eleições de Curitiba que, apesar de reconduzirem o atual Prefeito ao cargo pela terceira vez, elegeram a primeira vereadora negra e foi a primeira vez que uma “trans” se candidatou  à Prefeitura e uma mulher foi a vereadora mais votada, com mais de 12 mil votos.

Foi a primeira vez, também, que entraram em vigor as novas regras da reserva de, no mínimo, 30% dos fundos eleitoral e partidário e a aplicação do mesmo percentual ao tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão para o gênero em menor número representado, no caso, mulheres, com a obrigatoriedade dos partidos de fazer a divulgação dessas candidaturas. Antes, a obrigatoriedade de cotas de 30% para o gênero representado em menor número, as mulheres.

Ainda assim, nas eleições deste ano foram 2,5 mais homens que mulheres candidatas para os cargos de prefeito, vice e vereador no Brasil, somando 370 mil candidaturas masculinas contra 187 mil postulantes femininas.

Uma mulher apenas foi eleita para prefeito nas capitais e cinco vão disputar o segundo turno. Cinthia Ribeiro (PSDB) foi reeleita em Palmas (TO). Manuela D’Ávila (PCdoB), em Porto Alegre (RS), Socorro Neri (PSB), em Rio Branco (AC), Marília Arraes (PSB), em Recife (PE), e Delegada Danielle (Cidadania), em Aracaju (SE), continuam na disputa.

Um número ainda baixo se analisarmos que, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mulheres são 52,49% do eleitorado apto a votar no país e mais da metade da população é autodeclarada negros (pretos e pardos), segundo o IBGE.

Vale lembrar que, tanto a conquista pelas cotas de gênero quanto as conquistas raciais foram propostas por mulheres parlamentares. Benedita Silva, primeira senadora negra eleita pelo Rio de Janeiro, e Martha Suplicy que, antes de conquistar a política, conquistou e polemizou a audiência na televisão aberta dos anos 80, com o programa TV Mulher, onde falava sobre sexualidade e criticava a objetificação do corpo infantil em plena ditadura. O programa era exibido no período em que começaram as mobilizações do movimento feminista pela Constituinte de 88.

A interseccionalidade foi entrando em pauta a partir das feministas negras que questionavam a “universalização dos conceitos de gênero heteronormativos e eurocêntricos”.

Akotirene (2019) explica que o termo mudou paradigmas teóricos e metodológicos “promovendo intervenções políticas e letramentos jurídicos sobre quais condições estruturais o racismo, sexismo e violências correlatas se sobrepõem, discriminam e criam encargos singulares às mulheres negras”.

Sob a interseccionalidade, vale ressaltar a importância da vitória de Carol Dartora, eleita a primeira vereadora negra de Curitiba, com mais de oito mil votos. A vitória da candidata negra pode ser o fator de virada para o avanço de pautas identitárias pleiteadas pelas vertentes interseccionais, já que Curitiba há mais de 300 anos se intitula capital de influência de imigrantes europeus.

O mito da democracia racial ainda vinha acompanhado da crença de que as relações raciais no Brasil teriam sido mais humanas do que as encontradas nos Estados Unidos, por exemplo, posto que aqui teríamos encontrado um senhor benevolente. Todavia, os dados do período escravista sobre mortalidade infantil, alforria e expectativa de vida têm demonstrado que o mito do senhor benevolente também não encontra correspondência com a realidade. (SKIDMORE, 1976).

Falar em democracia e falar dos movimentos feministas pode causar estranheza para alguns e normalidade para outros. Em ambos os casos, faz sentido, já que o silenciamento histórico de mulheres e a naturalização do machismo e do patriarcado fazem parte da história que se universalizou na visão eurocêntrica e heteronormativa.

Porém, não há como negar que o protagonismo feminino vem sendo, aos poucos, naturalizado. Se pensarmos na redemocratização do Brasil, por exemplo, o papel das mulheres foi fundamental.

Em 1965, o Movimento Feminino Pela Anistia, liderado por mães, esposas e filhas que reivindicavam o retorno de seus filhos, maridos e companheiros exilados ou presos. Sob influência do maio de 68, o Movimento Contra a Carestia, em que donas de casa protestavam contra o arrocho salarial e a alta inflação. Já na década de 1970, o Movimento Por Creches, em pleno regime militar.

No que se refere aos direitos humanos no Brasil, a Constituição de 1988 constitui uma referência primordial, pois resultou em uma verdadeira mudança de paradigma do direito brasileiro no que se refere à igualdade de gênero e liberdade de expressão. É inegável a participação do movimento de mulheres que resultou em uma histórica e bem sucedida campanha intitulada “Constituinte pra Valer Tem que ter Direitos da Mulher” e atuaram diretamente junto ao Congresso Constituinte em um movimento conhecido como o “Lobby do Batom” que resultou numa carta entregue pela feminista e cientista política Jacqueline Pitanguy, nas mãos de Ulisses Guimarães, durante a posse como Presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 88.

 

Encontro Nacional do CNDM (Conselho Nacional dos Direitos da Mulher), em 26 de agosto de 1986, que contou com a atuação de duas mil participantes, entre elas advogadas e conselheiras do CNDM, e resultou na elaboração da Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes, entregue ao deputado Ulysses Guimarães, presidente da ANC, no dia 26 de março de 1987, num ato solene em que estiveram presentes 800 mulheres.

Encontro Nacional do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, em 26 de agosto de 1986, que contou com a atuação de duas mil participantes, e resultou na elaboração da Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes, entregue ao deputado Ulysses Guimarães, presidente da ANC, no dia 26 de março de 1987, num ato solene em que estiveram presentes 800 mulheres. Créditos da Imagem: Portal Estudos do Brasil Republicano.

A assembleia resultou na Constituição de 1988, que teve aprovação de oitenta por cento das propostas encaminhadas pelas feministas do “Lobby do Batom”. Entre elas, direito de ação de movimentos sociais organizados na defesa de seus interesses; educação universal pública e gratuita em todos os níveis; obrigação estatal na educação especial para portadores de deficiências físicas ou mentais; liberdade de pensamento e expressão; soberania na negociação da dívida externa; livre associação profissional e sindical; direito de greve a todas as categorias profissionais; política responsável de proteção ao meio ambiente; política de manutenção e respeito à integridade das populações indígenas.

O Lobby do Batom foi um grande exemplo do ativismo feminino na Constituinte de 88.

Carol Dantora vai exercer o mandato de vereadora. A primeira mulher negra a ocupar a cadeira na Câmara Municipal de Curitiba.

Benedita da Silva, do Rio de Janeiro, foi a primeira senadora negra eleita tempos depois da Constituinte de 88. A expectativa e o enfrentamento destas vitórias já fazem parte da história viva. “Mulher negra, diversidade, educação, chegou a nossa vez” é o jingle da campanha de Carol, numa cidade que se reconhece com raízes e estética urbana europeias.

Neste sentido, vale ressaltar a importância deste mandato numa cidade que teve a sua história oficializada, descrita nos séculos anteriores por historiadores como a “Terra sem Mal”. Curitiba foi descrita nos livros históricos como cheia de “espaços idílicos, que seriam habitados por uma população diferenciada e melhor que o restante do país porque esta região seria dotada de uma natureza edênica e de uma população diferente: europeia, empreendedora, detentora da técnica, da ciência e fundada na razão”.

O negacionismo ao longo dos séculos silenciou milhares de afrodescendentes. Um negacionismo que estava escondido nos livros oficiais no Paraná. Martins (1955), em obra de referência da historiografia regional, afirma que “em relação às populações afrodescendentes no Paraná houve eliminação dos registros culturais de sua existência e de sua participação efetiva na construção do Estado e da região, sendo que, alguns mitos nos deixam a ideia de que o índio, por exemplo, tivesse se afastado para lugares ermos, deixando espontaneamente o espaço territorial livre para os colonizadores europeus”.

Uma história contada sem os olhos da interseccionalidade e que invisibilizou questões a serem enfrentadas pelo Poder Público da época.

Carol Dartora estará ao lado de outros negros e de outras mulheres na Câmara Municipal de Curitiba. Não, talvez, ao lado de certas batalhas identitárias, feministas, interseccionais já que 20 vereadores se reelegeram e 17 cadeiras foram renovadas. De acordo com a Câmara Municipal de Curitiba, o índice de renovação deste ano seguiu um padrão histórico. Acima de 2016, quando 15 candidatos estrearam na câmara, mas igual a 2012, por exemplo.

Um padrão histórico conservador. Hegemônico branco e masculino.

Que Curitiba, seja de todxs. Assim como se é nos terreiros de Umbanda e Candomblé, que são muitos na capital.

Axé para todxs!

 

 

[1] Simone Hubert é professora da PUCPR e assessora de imprensa, tendo atuado nas principais emissoras de TV do Paraná e São Paulo. Especialista em cinema, escreve e produz roteiros para vídeos publicitários, institucionais e campanhas políticas. É também membro da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação Política.

 

Referências

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Feminismos Plurais. São Paulo: Ed. Pólen, 2019

MARTINS, Wilson. Um Brasil Diferente: ensaio sobre fenômenos de aculturação no Paraná. São Paulo: Anhembi Limitada,1955.

PITANGUY, Jacqueline. Os Direitos Humanos das Mulheres. Fundo Brasil de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.fundodireitoshumanos.org.br/downloads/artigo_mulheres_jacpit.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2016.

SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.