Grupo de pesquisa ligado à linha de Comunicação e Política do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná.

E livrai-nos de todo o mal

 

Por Lucas Gandin [1]

 

Na segunda-feira à noite da última semana (14/12/20), o Ministério da Saúde transmitiu, no Canal do YouTube DataSUS, a celebração de uma missa em intenção ao “Ministério da Saúde, pelos servidores e colaboradores de todo o ministério, pelo SUS, pelo enfrentamento da pandemia da Covid-19 e por todas as vítimas”. Embora o Ministério tenha afirmado que se trata de “evento anual que integra o calendário de ações internas da pasta”, a celebração suscita algumas discussões específicas para o momento que vivemos no país.

A primeira, que repercutiu nas redes sociais, questiona a laicidade do Estado brasileiro. Não quero me aprofundar nesta questão. Em 2012 e 2013, a Justiça Federal negou pedido do Ministério Público Federal que pedia a retirada da expressão “Deus seja louvado” das cédulas do Real. Segundo a decisão da juíza Diana Brunstein, “a citação de Deus nas notas, não parece ser um direcionamento do estado na vida de um indivíduo que o obrigue a adotar ou não determinada crença”. O entendimento é algo como “o Estado laico não é um Estado ateu”.

A segunda repercutiu críticas à falta de um plano para o combate da pandemia e para a vacinação da população, sustentada numa espécie de incredulidade retórica, pois enquanto esperávamos medidas efetivas de enfrentamento ao corona vírus, tal qual estão sendo adotadas em outros países, o governo ocupa sua agenda com eventos poucos efetivos, como se tudo estivesse em perfeita ordem. Vale lembrar que, uma semana antes, Bolsonaro participava da abertura de uma exposição dos trajes usados por ele e pela primeira-dama, Michelle, na posse em 2019.

Há ainda uma outra discussão (que, obviamente, não esgota o assunto), acerca do significado simbólico contido na celebração da missa. A situação da pandemia no Brasil nas últimas semana se agravou de tal maneira que a taxa de transmissão do vírus e de leitos ocupados já ultrapassa o registrado em julho e agosto de 2020 – os piores meses até então. O país parece agonizar. Os governos estaduais voltaram a adotar medidas de restrição e o comércio e o turismo temem enfrentar perdas econômicas no período mais lucrativo do ano. Na falta de um plano de enfrentamento, nada parece poder salvar o Brasil. Na falta de ações concretas, apela-se ao milagre. Ao país, doente, resta-lhe a extrema-unção (ou a missa e as bênçãos redentoras).

Conforme nos explica Vernant (2002), o ser humano traz intrínseco o pensamento simbólico. Em comparação ao pensamento racional, produto da reflexão, da experiência e do empirismo, o pensamento simbólico remete ao que está acima da razão, compreendido enquanto crença. Por meio do simbólico, histórias sagradas são clamadas para explicar fatos, fenômenos e formas de organização social e como a humanidade se converteu naquilo que é hoje (ELIADE, 2010).

No caso específico das pandemias, o imaginário simbólico, fomentado pelos representantes da Igreja Católica, instaurou a noção de que as pestes eram fruto da ira divina, punição pelo pecado coletivo, e que somente o rei e o bispo seriam capazes, como agentes divinos na terra, de interceder junto a Deus para apaziguar sua cólera (BASTOS, 2017). Segundo o autor, “este imaginário evoca um traço marcante da perspectiva cristã relativa à doença: ela reconhece, preserva e qualifica a referência médica submetendo-a à deliberação divina” (idem). Utilizando as palavras de São Isidoro de Sevilha, Bastos (idem) completa: “ainda que esta enfermidade seja muitas vezes provocada pelas propriedades que têm o ar, não ocorre nunca, no entanto, sem a decisão de Deus onipotente”.

Não faltam exemplos, na história brasileira, de apelos à graça divina feito por nossos governantes. Rodrigues Alves, presidente entre 1902 e 1906 (cujas lendas teria morrido vítima da gripe espanhola, sem assumir seu segundo mandato em 1919), assim delegou a Deus seu pedido: “Deus nos há de ajudar, abençoando os nossos esforços. Ele é a força onipotente que impulsiona o progresso das noções”. O espírito de esperança trazido pelo fim da ditadura militar e pela redemocratização do país fez com que Tancredo Neves (que faleceu sem assumir o cargo, em 1985) também conclamasse a ajuda divina. Em seu discurso escrito para posse, faz a seguinte súplica: “queira Ele consagrar, com sua bênção, a imperecível aliança entre o governo que se inicia e a Nação que espera”.

A questão que se levanta não é a de diminuir a fé pessoal dos políticos e presidentes, mas de confrontá-la com o dever de um governante apresentar à sociedade os projetos e planos pelos quais ele pretende mudar a realidade do país e de sua população. Quando se apela ao sobrenatural, ao místico, ao divino, ao dogmático, entrega-se a causa providência, à crença, a um devir que não há data certa para acontecer. Quem poderá cobrar do presidente o progresso, se é a Deus que cabe o impulsionar? Quem poderá questionar o governante as melhorias esperadas se cabe a Deus se aliar ao Brasil?

O apelo ao mágico funciona como a cartada desesperada de quem já não sabe mais o que fazer. Em abril de 2016, ao proferir seu voto a favor da abertura do processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), o deputado Eduardo Cunha assim implorou: “que Deus tenha misericórdia desta nação!”. Teria sido um clamor profético? Em meio às piores semanas da pandemia no país, ao embate entre o governo federal e os governos estaduais e municipais, que se articulam para arquitetar um plano de vacinação, a missa celebrada no Ministério da Saúde, em vez de ser um louvor àqueles que enfrentam os desafios trazidos pelo corona vírus, ganha ares de uma súplica por redenção.

Na obra “Os irmãos Karamazóv”, de Fiódor Dostoiévski, há um trecho, no qual o personagem Ivan Karamázov conta a seu irmão, Aliócha, um poema que idealizou – trata-se da estória do Grande Inquisidor, que se depara com Jesus, em Sevilha, que retornou e está operando milagres. Em sua argumentação para condená-lo à fogueira, o Inquisidor argumenta que, quando o Diabo o tentou no deserto, Jesus teria mal julgado os homens, superestimando-lhes o caráter e a fraqueza:

O Espírito terrível e fecundo transportara-Te ao pináculo do templo e dissera-Te: “Queres Tu saber se és Filho de Deus? Atira-Te abaixo, porque está escrito que os anjos O hão-de sustentar e segurar e não Se ferirá; ficarás então a saber se és o Filho de Deus e provarás assim a Tua Fé em Teu Pai.” Mas repeliste a proposta e não Te precipitaste. Mostraste nessa altura uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! […] Ignoravas que o homem repele Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre o que ele busca. E, como não era capaz de passar sem ele, forja novos milagres, os seus próprios milagres, e inclina-se diante dos prodígios dum mago, dos sortilégios de uma feiticeira, mesmo que seja um revoltado, um herético, um ímpio confesso. Não desceste da cruz quando zombavam de Ti e Te gritavam por troça: “Desce da cruz e acreditaremos em Ti.” Não o fizeste, porque não querias escravizar de novo o homem com um milagre; desejavas uma fé que fosse livre e não inspirada pelo maravilhoso. […] Nesse caso, é um mistério, incompreensível para nós, e teríamos o direito de o pregar aos homens, de ensinar que não importam nem a livre decisão dos corações nem o amor, mas sim o mistério, a que se devem submeter cegamente, mesmo contra a aprovação da sua consciência. Foi o que nós fizemos. Corrigimos a Tua obra fundando-a sobre o milagre, o mistério, a autoridade.

A celebração da missa no Ministério da Saúde soa-nos, portanto, como uma tentativa de incutir na população que os desafios da pandemia serão enfrentados e resolvidos à guisa do milagre, de forma mágica e fantástica. O governo aproveita-se da fé e da religiosidade do brasileiro para se eximir da obrigação de adotar medidas efetivas para o combate da crise. Ou seja, se há um milagre por vir, basta crer e aguardar por ele. Mas, diante da falta de rumo deste governo teoprático, não é isso que podemos esperar?

 

 

[1] Doutor em Ciência Política (UFPR), Mestre em Comunicação (UFPR), Jornalista e Relações Públicas (UFPR).

 

Referências:

BASTOS, Mario J. M. Pecado, Castigo e Redenção: a Peste como Elemento do Proselitismo Cristão (Portugal, Séculos XIV/XVI). In: Tempo. Rio de Janeiro: Editora Tempo, Vol. 2, 1997. pp. 1-17.

BRASIL. Justiça Federal. 7ª Vara Federal Cível. Ação Civil Pública imposta pelo Ministério Público Federal objetivando a retirada da expressão “Deus Seja Louvado” das cédulas de Real. Ministério Público Federal X União Federal. Juíza: Diana Brunstein, 2013. Disponível em: < https://www.jfsp.jus.br/documentos/administrativo/NUCS/decisoes/2012/2012-11-30-deussejalouvado.pdf>. Consultado em 16 de dez. de 2020.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. São Paulo: Círculo do Livro, 1995.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2010.

VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política. São Paulo: Edusp, 2002.